(O título dessa crônica é de autoria do Gabriel, jovem de 15 anos, morador do bairro Zumbi, em Cachoeiro de Itapemirim. Gabriel e eu nos conhecemos durante oficina de escrita criativa que tive a honra de conduzir na Unidade de Internação Provisória, do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo).
VALQUIRIA RIGON VOLPATO
"As nuvens mudam sempre de posição, mas são sempre nuvens no céu. Assim devemos ser todo dia, mutantes, porém leais com o que pensamos e sonhamos; lembre-se, tudo se desmancha no ar, menos os pensamentos." (Paulo Baleki)
quarta-feira, 20 de março de 2024
De volta à praça
quarta-feira, 20 de dezembro de 2023
Olhou se não tem algum furo?!
Como se fosse ontem, lembro de minha mãe fazendo a seguinte orientação quando estávamos prestes a sair de casa – para passeio ou missa, ficar na casa de alguma tia – não importava o evento: “você vestiu a calcinha certa? Olhou se não tem algum furo?”. E a explicação vinha em seguida: “porque se acontecer alguma coisa e tiver que te levar no médico, tem que estar com a roupa boa”. Hoje, avaliando friamente, me pergunto se mamãe estaria aflita com um possível acidente ou com a vergonha de alguém ver a filha dela com uma calcinha furada?! De certo ela pensava em ambas as situações!
Outra recomendação que não esqueço – essa faz mais sentido, inclusive atualmente – é de não se sentar em qualquer vaso sanitário para fazer xixi; o famoso fazer xixi em posição de isometria para não permitir contato entre a pele e a louça da privada, claramente, decorria da preocupação de, no sentar-se, contrair algum tipo de doença. Nos anos 90, quando o ensinamento de urinar de cócoras, não muita abaixada a ponto de encostar na louça, nem tão elevada, a fim de permitir que o líquido escorresse pelas pernas, a Covid19 era mera cena de ficção cinematográfica; o uso do álcool 70%, esse aniquilador de vírus, bactérias e peles era incipiente. Todavia, minha sábia mãe, talvez guardando apenas o temor pela contaminação e não se atentando para cálculos matemáticos, deixou passar despercebido que sua filha, já naquela época, media um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura, o que me impedia de cumprir sua ordem com excelência, uma vez que, para além dos meus esforços, estava a limitação física; com o vaso sanitário a quarenta e cinco centímetros de altura, das duas uma: ou a parte de trás das coxas esbarrava no que mamãe pensava – com razão – ser um potencial transmissor de doenças ou o xixi molhava um pouquinho da parte interna das coxas. Soluções tais como fazer um “forrinho” de papel sobre o vaso eram ainda piores do que o forçoso treino de quadríceps em banheiros públicos. Um grande dilema para mim naquele tempo!
Anos mais tarde – quando comecei a pagar por minhas calcinhas – compreendi que mamãe tinha razão, não necessariamente, sobre a preocupação em alguém ver que vestia uma calcinha furada, mas sobre cuidar de mim; era auto cuidado o que ela estava me ensinando. Não apenas sobre ter uma boa apresentação social, mas também sobre investir em mim. Quanto à problemática do fazer xixi, novamente entendi que ela me ensinava sobre cuidar. Dia desses estive em São Paulo num compromisso de trabalho e, inevitavelmente, passei por banheiros públicos – passo por eles todos os dias – entretanto, à minha maneira, aplico o que mamãe ensinou: munida de álcool 70%, lencinhos umedecidos ou toalhas de papel, com orgulho, posso dizer que não houve vaso sanitário não esterilizado antes do uso, tão pouco deixei de fazê-lo após mim.
Na cabeça daquela garotinha de cinco, seis anos, não parecia fazer sentido os conselhos de sua mãe, foi somente com o tempo, experiências e percepções que compreendi a riqueza do que ela me trouxe; que cuidar de mim e do outro, do lugar comum, proporcionar que alguém cuja mãe não tenha recomendado a posição isométrica para fazer xixi – ou que sequer teve mãe para fazê-lo – possa se sentar, livremente, num vaso sanitário e receber de mim – mesmo sem saber – todo carinho e zelo que recebi de minha mãe, vai muito além de escolher a melhor calcinha ou não esbarrar na privada suja.
Clarice, a Lispector, disse: “até onde posso, vou deixando o melhor de mim. Se alguém não viu, foi porque não me sentiu com o coração.” Valquiria, a Volpato, gostaria de acrescentar: “ou porque não usou o banheiro depois de mim”.
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
Aqueles sábados...
..."ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins".
Sábado, 25 de janeiro de
2020.
Em casa as notícias chegavam por toda parte; no WhatsApp os grupos encaminhavam
vídeos, fotos e áudios que, ao serem baixados, davam conta da tragédia. À
medida com que as águas do Itapemirim inundavam a cidade, as galerias de
celulares transbordavam aqueles arquivos de uma das notícias mais tristes já
recebidas pelos cachoeirenses: o Rio Itapemirim, manso, de pequenas quedas
entre pedras, havia se transformado com ferocidade inimaginável! Os doze metros
acima de seu nível varreram o centro da cidade como nunca – sem qualquer
exagero – se tinha visto.
Domingo, 26 de janeiro de
2020.
Por volta das quatorze horas, após uma longa noite de angústia, o Itapemirim
parecia se reencontrar em suas margens. No grupo de trabalho nos organizamos
para a missão, que apenas mais tarde, entenderíamos seu verdadeiro significado;
calcei botas emborrachadas, calça, uma blusa mais surrada, amarrei os cabelos
em coque e, na companhia de minha irmã e cunhado, rumamos até o Palácio
Bernardino Monteiro. Nosso carro estava limitado a algumas ruas da parte mais
alta, descemos a pé e, de imediato, nos deparamos com a Praça Jerônimo Monteiro
encoberta com tonelada de lama, restos de galhos e mobílias. Caos. Quando a
chave girou para abrir a porta do Bernardino Monteiro ainda não poderíamos
concluir em qual momento da história estávamos; no chão a lama fina, ainda
misturada em água, formava um espelho, o mesmo que refletiria, friamente, a
destruição.
Sábado, 03 de junho de
2023.
Mês de férias, estava viajando para conhecer um pedacinho do Ceará, mas com o
coração em Cachoeiro de Itapemirim, isso porque era noite de inauguração do
Espaço Cultural Casa Carmô, iniciativa incrível da atriz, mulher incansável e
amiga, Amanda Malta. Junto do Anderson, seu parceiro de vida, fizeram com que a
casa fechada na Rua Prefeito Seabra Muniz, no Bairro Independência, ganhasse as
formas mais genuínas da cultura cachoeirense! Eles pensaram cada detalhe, do
lustre às fotos expostas pelas paredes, a Casa Carmô compôs a receita perfeita
ao misturar café e cultura; um chopp também para aqueles que, como eu, numa mão
seguram o livro de poemas e na outra a alça da caneca, enquanto, sem medo,
falam sobre política.
Sábado, 16 de setembro de
2023.
Marco Antônio Reis e Brenda Perim me convidaram para prestigiar a inauguração
do Centro Cultural Luz Del Fuego, seu mais recente projeto, aprovado pela Lei
de Incentivo à Cultura Capixaba. Um pouco cansada após ter passado o dia entre
tarefas domésticas, transformei a gata borralheira em Cinderela, e fui ao
encontro dos amigos e seu novo espaço cultural, na Rua Newton Prado, no Bairro
Ibitiquara. Duas atrações, ambas exibidas no teatro localizado na parte
superior do imóvel, me fizeram chorar; Luiz Carlos Cardoso, com seu ensaio
aberto de “A Metamorfose” de Franz Kafka, mexeu em algum lugar adormecido em
mim. Senti a lágrima escorrer com gosto de saudade. Na cena seguinte, Iuriê me
surpreendeu, uma Luz Del Fuego atual, performática, se rodopiava – em meus
pensamentos, ao som dos bandolins, tal qual a dançarina de Oswaldo Montenegro –
trazendo à tona a força de um choro irresignado, de mulher que jamais se cala
ante as adversidades e violências estruturais.
Sábados, 25 de janeiro de
2020 e 16 de setembro de 2023. Na noite que o
Itapemirim transbordou e devastou o centro da cidade, revirando espaços
culturais, uns em especial, como o Teatro Municipal Rubem Braga – que segue
fechado, agora blindado por uma espécie de tapume em aço ou algo assim, na
tentativa de “espantar” a população em situação de rua e, por conseguinte,
aprisionar a arte naquela caixa aporofóbica – não entendi como doze metros de
água e lama teriam, tão ferozmente, submergido a cultura e o palco do teatro.
Ao me deparar com “A Metamorfose” e aquela Luz Del Fuego vibrante, não me
restaram dúvidas: em momento algum a natureza se voltara contra a cultura ou
quisera destruí-la; as águas violentas do Rio avançaram sobre o Municipal Rubem
Braga e o calaram para que outras vozes pudessem ser ouvidas. Existiu, por fim,
um ato de coragem da própria natureza que, ao mover, forçosamente, aquilo que
estava acomodado, incomodou Amanda, Anderson, Marco e Brenda; calou-se o
teatro, gritaram os artistas!
terça-feira, 28 de março de 2023
21 de Março: Dia Internacional contra a Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé
“...quando a batida no couro do tambor respondeu à primeira estrofe da cantoria, veio vindo, de dentro, a vibração; sangue pulsando e a certeza de que havia ali identidade. Era o mesmo DNA. Batendo palmas, a roda se mantinha, calor provocado pela emoção aquecendo a noite fria daquele 13 de Maio”.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2023
IncoMude-se
"Encaixados vão construindo a vida, que é estrada, mas não ponto final"... |
Tantas coisas para escrever e um emaranhado de pensamentos tentando encontrar porta de saída – assim me sinto quando tenho a necessidade de olhar o papel em branco e conversar com ele coisas que, até sei dizer, mas não com a precisão com a qual posso escrever. Janeiro de 2023, o tempo não parou para minhas reflexões sobre o ano que passou – e 2022 merece uma pausa, uma xícara de café, um biscoitinho polvilhado com açúcar; merece ser sentido.
É clichê falar sobre aprendizados após o ano que se encerra, todo mundo faz isso – e daí se sou todo mundo de vez em quando?! – fato é que 2022 me deu certezas, entre elas que caminho não é destino. Mulher, 38 anos, advogada, servidora pública, escritora por paixão e muita convicção, solteira, sem filhos por opção, esses são os pavers do caminho que percorri até aqui. Encaixados vão construindo a vida, que é estrada, mas não ponto final. Lembro da metáfora do sapo, que se colocado na panela com a água ainda fria e aos poucos esquentando, certamente, morrerá cozido, porque a forma paulatina como o calor envolve o anfíbio não proporcionará o incômodo necessário para que ele pule e salve a própria vida. O sapo morre cozido na acomodação da água que esquenta aos poucos – o homem também.
Na história do sapo fico imaginando alguns cenários possíveis: ele se acostuma a ferver e morre sem reagir, sem sequer se debater, porque não percebe. Alguém o cutuca, balança a panela, ele pula para fora – estaria vivo! Mas, em “casa”? A verdade – minha e não, necessariamente, do sapo – é que o calor da água quente dá a impressão de segurança, conforta algumas emoções; do lado de lá da panela é desconhecido, frio (?), as possibilidades são infinitas e dá medo de viver, de experimentar o novo. Lembra quando eu disse que está tudo bem ser todo mundo de vez em quando?
Em 2022 cutucaram a panela e o “eufíbio” pulou para onde não conhecia. Não houve chão seguro, pelo contrário, a sensação de não estar em casa trouxe desconforto e noites mal dormidas; momentos em que voltar para a água quente parecia meta, única solução. Por fim, desistir. O aprendizado, afinal, repousaria no desistir? Fatalmente, que não! Há que se aprender, ainda, que a vida é estrada e não destino, por isso desistir não é sequer opção. Enquanto o foco era a panela, o mundo estava limitado ao diâmetro de grãos de arroz cozidos para o almoço; embora o sapo – e eu – não soubesse, depois de sair da letargia dessa enganosa sensação de conforto e segurança, outros lugares também podem ser seguros, não mais pela ebulição da água que acolhe – ilusão – e depois mata, mas pela pavimentação das vias condutoras do destino.
Acredito mesmo que não é necessário ter certeza o tempo inteiro – ganhar e perder, fazem parte – contudo, entender onde se está posicionado no universo é a medida certa entre a dimensão de mundo ou de panela. E se a água esquentar, pule.
Valquiria Rigon Volpato,
20 de janeiro de 2023.
quarta-feira, 2 de novembro de 2022
Confesso
Resident Evil – lançado em 2002 – chamou minha atenção e não resisti. Cliquei e passei horas acompanhando o drama de Jade e sua irmã, Billie Wesker, na incansável luta para fugir do T-vírus, que se espalhava, novamente, sem controle, como no terrível incidente de Raccoon City, no México. O bioterrorismo da Umbrella nunca deixou de existir; as camuflagens sociais e a ideia de domínio disfarçada de avanços científicos, contaminou o mundo com um poderoso vírus que, pouco a pouco, transformava pessoas em zumbis. Descontrole emocional, raiva, episódios agressivos e morte – características marcantes de quem, seja como for, era contaminado pelo T-vírus.
Apenas fugir, tentar escapar, foi o que restou, inicialmente, à Jade, que viu aquele que dizia ser seu pai – na verdade criador – manter-se existindo, assim como seus clones, através do sangue de suas próprias filhas-criaturas. O drama familiar de Jade e Billie, que naquela altura convivia com instabilidades emocionais e o medo de se tornar um zumbi assassino, ainda que importante para uma análise de caso – até porque qualquer semelhança pode não ser mera coincidência – era secundário. De um lado, a Umbrella Corporation, liderada na ocasião pela implacável Evelyn Marcus, não permitia que nada atravessasse seu caminho rumo ao poder e dominação; sem aceitar opiniões contrárias, Evelyn atira e mata o próprio filho a sangue frio – uma cena que me fez congelar diante da TV. O surto caótico de Evelyn, que até minutos atrás aparentava ser “boa mãe”, impactou. Um tiro certeiro no olho do jovem Simon é a prova cabal de que a Umbrella não poderia abrir espaço para diálogo, tão pouco permitir a descoberta das consequências de seus experimentos irregulares e, assim, demonstrar ao mundo sua verdadeira intenção: lucrar, desenfreadamente, às custas dos mais fragilizados.
A promessa de inovações farmacêuticas pregada pela Umbrella Corporation – com fórmulas capazes de aliviar os estresses e ansiedades, na verdade, aplicava travas sensoriais, tornando os usuários insensíveis. Completamente, insensíveis. Mutações genéticas e armas biológicas, controle de massa: o objetivo aristocrata da corporação estava posto.
Baseada em privilégios de uma classe social, criada por detentores do capital, indiferentes a quaisquer mazelas humanas, Umbrella começa a ruir por seus próprios erros. As falhas, em especial de Raccoon City, evidenciavam que o modo de operação vigente não se sustentaria e que, apesar de todas as investidas para continuar seus testes ilegais, o apocalipse zumbi era irreversível. Noutra cena, Jade segue fugindo, lutando contra o sistema e perseguições de Umbrella, bem como lutando contra centenas de milhares de zumbis – despidos de qualquer reflexão, raciocínio ou característica humana, apenas repetindo atos agressivos em efeito manada.
Assisti aos oito episódios da primeira temporada de Resident Evil em sequência, aflita, dialogando com as personagens e, por fim, diferente dos filmes – cujas conclusões são imediatistas – à espera de novos capítulos, em especial, para Jade, que sem desistir, busca encontrar reagente antiviral para o T-vírus e, assim, curar e salvar a humanidade.
Resident Evil, Umbrella Corporation são obras de ficção. Apesar de se parecem muito com alguma realidade – brasileira – por aí.
Valquiria Rigon Volpato
02 de novembro de 2022.
sexta-feira, 12 de agosto de 2022
Os Silêncios
Noite dessas sonhei que escrevia; não sei bem se era texto ou lamento, mas lembro que havia sentimento. Acordei com os olhos úmidos. Ao longo do dia fui sentindo saudades – um incômodo, melhor assim –, uma lembrança que sei bem de onde vem. Quando a vida fora faz muito ruído, o silêncio das palavras me acalma, faz com que dentro haja paz; percebo, imediatamente, o mar tempestuoso voltar a ser lagoa azul. Meu navio de emoções ancora e me sinto segura. Foi sempre assim, mas parece que havia esquecido...
Ontem caminhava pela Rua Vinte e Cinco de Março tentando não pensar – bem difícil, confesso, porque a cada passo enxergo um mundo inteiro à minha frente. São composições: vejo a arquitetura, a história, crio minhas próprias histórias e vou me emocionando com tudo. A Casa dos Braga sempre me chama atenção, não apenas pelos contornos de uma construção que imobilizou parte do tempo, mas pelas vozes que ouço quando passo pela calçada; em verso e prosa, nitidamente, conversam comigo. A noite de ontem me pareceu, providencialmente, especial ao se chocar com a necessidade dos meus silêncios, que na verdade são silêncios para o mundo ao redor – é quando deixo de escutar os outros e passo a fazer meu próprio barulho.
No Jardim da Poesia vi palavras se ajuntando em sinuosas curvas; poéticas vinham ao encontro das tolices guardadas em meu coração. Pausa. Olho novamente. O externo está em câmera lenta e agora parece fazer mais sentido. Valsamos – palavras, sons e silêncios, nada além de nós e nossa particular admiração uns pelos outros – tão despreocupadamente nos entrelaçamos, mesmo instante em que o relógio parou e houve um último estampido, o som produzido pelo cessar do caos.
Nasci
palavra. A vida tem me feito texto. Vejo meus pontos, vírgulas, novos
parágrafos e essa costura assimétrica de um ensaio literário, uma obra de sons
e particulares silêncios. Os mergulhos em mim são profundos, não consigo estar
na superfície da vida e, quando ignoro, ela me alcança e me devolve – não sei
respirar fora de mim –, me traz sonhos como o daquela noite em que escrevia, umedece
meus olhos, força minhas placas tectônicas e provoca abalos sísmicos em
sentimentos esquecidos; tudo vem à tona, é sim como as lavas vulcânicas, não há
como conter, impedir, não há esbarro, limite, contenção, apenas deixar fluir,
queimar, encontrar seu curso e, novamente, silenciar.
O vulcão adormecido nunca deixou de existir. Ele sempre estará lá. Até a próxima erupção.
Os
Silêncios, de Valquiria Rigon Volpato
11
de agosto de 2022.
segunda-feira, 23 de maio de 2022
O que ainda está inteiro em mim
[Antes de continuar com a ideia principal desse texto, preciso parar e refletir um pouco sobre a ligeireza do tempo, como tudo aquilo, apesar de tão vívido em mim ficou tão distante. Caramba! Foram duas frases na tentativa de compor um parágrafo e parece que algo explodiu em mim... Eu só tinha doze anos, não poderia supor quantas coisas aconteceriam comigo nos próximos vinte e cinco anos e como os atos daquele momento, mesmo com meu total desconhecimento sobre previsão de futuro iriam influenciar quem sou hoje ou como todos aqueles pedacinhos eram parte de mim].
Naquela época frequentava com rotina a biblioteca da escola – o extinto Colégio Ateneu Cachoeirense – e me interessavam os romances, encontrava nos livros emoções que me faziam transbordar junto às personagens. Não saberia dizer quantas vezes chorei e sorri para o papel absorta naquele conteúdo de vidas que se confundiam e entrelaçavam à minha. Um de meus dilemas durante a leitura era saber dosar a velocidade: não podia ler rápido demais sob pena de terminar o livro e ficar órfã daquela história que mexia tanto com meus sentimentos; órfã do amor estabelecido no curto espaço de tempo que duravam esses meus relacionamentos adotivos.
Nas prateleiras de madeira da biblioteca do Ateneu encontrei certa vez com um tal Pedro Bandeira, responsável por fazer adaptação livre da obra Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, escrevendo o então seu “A Marca de uma Lágrima”. Acredito que mais do que a própria Isabel – protagonista da trama de Bandeira – minhas lágrimas marcaram as páginas do livro; fortissimamente conectada à história, havia em mim sensações e imagens, tudo acontecia na forma como meu corpo e pensamentos projetavam as cenas.
Vinte e cinco anos mais tarde, manhã de segunda-feira, numa conversa despretensiosa costurada por uma xícara de café, lembrei-me do quanto sou sensível e como os sentimentos importam para mim. Viajei no tempo para me reencontrar com a menina leitora e perceber nas páginas dos livros o refúgio, a liberdade de ser, sentir e criar minhas histórias, indo para lugares, conhecendo pessoas... vivendo através delas. Na mesma conversa, em maio de 2022, percebi que a falta despertou em mim o desejo; por não ter, agarrei a oportunidade quando a encontrei e a fiz especial. Minhas emoções importam – não as devo julgar e condenar – porque, definitivamente, a partir delas construí sentimentos.
Os livros me ensinaram a amar, chorar e sorrir, me sensibilizaram, falaram comigo sobre empatia – e isso não tem nada a ver com perfeição. Entre tantos pedaços de mim, especialmente hoje, os livros me parecem aquilo que, validado pelo tempo, ainda está inteiro em minhas memórias e coração.
domingo, 5 de dezembro de 2021
"Esse não é um texto sobre saudade, é sobre ser e estar presente..."
Domingo de manhã a gente acorda cedo pra ir à igreja. Vamos todos no fusca 1973 do papai. Legal é que quando abro os olhos, ela já está na cozinha esperando pra pegar carona, ela faz questão de ir à igreja, cantar aquilo que sabe de cor e ler o que aprendeu, quase sozinha, num orgulho danado de saber o que está escrito nos livros que usamos na missa. Na igreja o lugar dela é certo: cantinho do segundo banco à direita! É lugar cativo, tanto que ninguém se senta ali e quando um visitante comete essa “gafe”, logo alguém avisa: “não senta aí, não, porque esse lugar é da Dona Zelinda”.
Quando termina a oração, ela sai, fica ali na porta da igreja cumprimentando os amigos, vizinhos, contando histórias. Eu me aproximo, ela me abraça forte e convida para tomar café com ela, sempre me seduzindo com a frase: “o pão tá quentinho, fiz agora de manhã”. A gente entra no fusca, papai nos deixa na casa dela, e vamos nós pro café com pão de casa e manteiga derretida. Não demora muito e a família começa a se reunir, chegam tios, primos, amigos e a cozinha vai ficando pequena pra acolher tanta gente; a conversa se expande e só é interrompida pelos risos e brincadeiras; pouco a pouco, o cheiro do café vai sendo substituído pelo da “minestra” feita com macarrão de casa, coisa que ela faz questão de fazer. Gosto de ajudar ela a abrir a massa do macarrão – antes era no rolo de madeira, agora tem o “cilindro” fixado à mesa. Que modernidade! – passar fubá pra não grudar e, enquanto isso, sentir aquele cheiro bom de família reunida. O almoço não pode demorar, ela gosta de servir antes do meio dia; coloca as panelas e travessas sobre a mesa, logo a fila se forma e cada um acha um canto da casa pra apoiar o prato. Silêncio. Único momento em que todos ficam quietos é quando estão comendo!
Nem bem termina o almoço já tem água fervendo pra fazer mais café. Um lava a louça, outro vai secando com o pano de prato, guardando aquele monte de vasilhas, eu costumo varrer o chão da cozinha e passar pano, porque ela é exigente com limpeza, não gosta de gordura e água no chão. Tudo arrumadinho e limpo, a gente vai pra varanda – da frente ou da sala – ela deita, escora a cabeça com o antebraço e mão esquerda. Novamente, a família reunida pra continuar o bate papo após o almoço. Deito ao lado dela e fico olhando o céu; as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil, fantasiando a velocidade em que a Terra gira.
Faz dez anos da última vez que a vi. Dez anos do pão, do café, das conversas, da carona de fusca para ir à missa; acho que hoje sei, não em números, mas em sensações o quão rápido a Terra gira... Não consigo falar dela no passado, porque não é lá que ela está, ela está aqui junto de toda a história a ser lembrada, no amor imenso que sempre demonstrou por todos e nas sementes desses mesmo amor que deixou plantada em nós. Esse não é um texto sobre saudade, é sobre ser e estar presente; vó Zelinda, PRESENTE!
"...as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil, fantasiando a velocidade em que a Terra gira" |
segunda-feira, 4 de outubro de 2021
O sertão que há em nós
"Em beiras de ruas de chão batido, enfileirados desenham escadas humanas, pequenas vidas severinas de severidades que se aproximam, vão no vão de seus anseios desejar o mínimo – arroz, feijão – a fome, se vai embora, deixa solidão; ela é constante companhia. Dói o estômago vazio, dói mais o pouco raciocínio de quem, tendo a chance, não resolve problemas, apenas fomenta a confusão."
Sustento mesmo vem do xique-xique, que ensopado em choro, mantém o corpo de pé: levanta cedo, vai pra lida, ergue a cabeça, sobrevive e volta pra dormir. Em casa, a noite soturna encobre os pedintes olhares, melhor assim – deixar acreditar que, quando os olhos não podem ver, o coração finge se enganar. Chique mesmo são os champanhes e canapés, os brindes com rapés, essas plantas que não nascem no sertão – compradas a preços altos, pagas em cartão, dinheiro que desce pelo ralo, diferente da água que não irriga mais o chão.
Esperança é item raro, anda caro no mercado da ilusão, parece chuva anunciada quando o amontoado de cirros mancham o azul do céu; expectativa – essa sim! – se cria tal qual erva daninha que sufoca a plantação. Mil léguas em pés descalços, enfrentando os percalços na certeza de resistir – mais a frente ainda tem poço d’onde vem o pouco pra beber – lata d’água na cabeça e fé – fita o caminho, porque mesmo sozinho, não se pode desistir.
Tem sertão por aí que não é no nordeste, mas que vai de leste a oeste, norte, sul, sudeste, tem escassez no homem, seca atroz dentro de nós – o homem bicho, carcará que pega, mata e come, nem sempre pra matar a fome, numa batalha desleal de exaltação do próprio nome. No entanto, na aragem do coração sertanejo o solo é fértil, a semente do amor germina forte, porque, para quem não foge à luta, nunca será sorte, sempre será coragem!
(Cachoeiro de Itapemirim - ES, 29 de setembro de 2021
Valquiria Rigon Volpato)