"Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa:"Eu sou lá de Cachoeiro..."

(Rubem Braga)

quarta-feira, 20 de março de 2024

De volta à praça

(O título dessa crônica é de autoria do Gabriel, jovem de 15 anos, morador do bairro Zumbi, em Cachoeiro de Itapemirim. Gabriel e eu nos conhecemos durante oficina de escrita criativa que tive a honra de conduzir na Unidade de Internação Provisória, do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo).


Hoje, enquanto almoçava no shopping Cachoeiro, um pensamento distante veio à tona; lembrei de quando almoçar naquela praça de alimentação era algo que estava muito além das minhas possibilidades financeiras. Em dezembro 1995 o shopping, recém-inaugurado, tinha aquela conotação de novidade – o cachoeirense entende o que estou dizendo – o point do momento era frequentar o shopping, olhar as vitrines, era um passeio importante na minha dimensão de criança à época com dez anos.

Em algum lugar do passado, na mesma praça de alimentação, seria exibido o filme Titanic, uma febre quase tão ardente quanto a paixão de Jack e Rose eternizados por Leonardo Di Caprio e Kate Winslet. Na oportunidade, já com doze, treze anos, o sonho de menina era assistir ao filme, mas na mesma proporção em que a praça de alimentação era distante, Titanic também se mantinha afastado de minhas possibilidades.

Na Escola Unidocente Itabira, aos oito anos, ingressei na primeira série – não vou me ater aqui à técnica, ao que mudou, vou escrever como vivi, como era naquele tempo – pulei toda a fase do “prezinho”, estudei até a quarta série sob os cuidados da professora Nicéia, minha tia, irmã de minha mãe, que até hoje se mantém em sala de aula – uma verdadeira heroína da educação básica. Mais tarde, convencido de que seria o melhor, preocupado com as greves no ensino público, meu pai me matricularia no Colégio Ateneu Cachoeirense, onde permaneci até o terceiro ano do ensino médio. O fato de estudar no Ateneu parece controverso a impossibilidade de acessar a praça de alimentação do shopping Cachoeiro, porém controverso mesmo era o fato de estudar em escola particular – o esforço financeiro para que eu pudesse estar naquele colégio foi grande, só me restando a opção de estudar e aproveitar o tempo ali.

O tempo. Era hora de deixar o Ateneu e pensar no vestibular, lembro de ter medo desse momento, de não conseguir, acabei prestando vestibular para Comunicação no Centro Universitário São Camilo e Direito, na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – se você me conhece, já sabe o caminho que escolhi trilhar... Durante a faculdade, o shopping ainda era inacessível, costumava entrar para olhar as vitrines, usar o banheiro, trabalhar – pois é, trabalhei por um período no shopping Cachoeiro, mas essa é outra história.

Quando concluí a faculdade, já em 2008, nossa relação – a minha com o shopping Cachoeiro – esfriou um pouco; a gente não tinha mais a paixão estilo Jack e Rose, embora, de minha parte, estivesse sempre por ali – nas “aventuras” das escadas rolantes, no cinema, no sétimo andar apenas para ter vista da cidade, fotografar o Itabira, na praça de alimentação quando, vez ou outra, comprava água ou suco, uma espécie de contrapartida por estar sentada esperando o tempo passar.

Agora, enquanto almoço na praça de alimentação do shopping Cachoeiro nos percebo mais equilibrados, nossa relação mais madura, até porque daquele 1995 pra cá muita coisa mudou. Levanto-me. Compro um bombom de chocolate com recheio de morango e desço as escadas rolantes em paz.

Cachoeiro de Itapemirim - ES, 20 de março de  2024

Valquiria Rigon Volpato


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Olhou se não tem algum furo?!

Ensinamentos de mãe a gente vai levando pela vida inteira, ao menos levo os que ela me  trouxe – e ainda traz – apesar de alguns, vez ou outra, não fazerem tanto sentido assim para mim. Para a reflexão de hoje, vou me ater a dois conselhos – naquela época eram ordens – recebidas de mamãe, quase que diariamente, quando garotinha.



Como se fosse ontem, lembro de minha mãe fazendo a seguinte orientação quando estávamos prestes a sair de casa – para passeio ou missa, ficar na casa de alguma tia – não importava o evento: “você vestiu a calcinha certa? Olhou se não tem algum furo?”. E a explicação vinha em seguida: “porque se acontecer alguma coisa e tiver que te levar no médico, tem que estar com a roupa boa”. Hoje, avaliando friamente, me pergunto se mamãe estaria aflita com um possível acidente ou com a vergonha de alguém ver a filha dela com uma calcinha furada?! De certo ela pensava em ambas as situações!

Outra recomendação que não esqueço – essa faz mais sentido, inclusive atualmente – é de não se sentar em qualquer vaso sanitário para fazer xixi; o famoso fazer xixi em posição de isometria para não permitir contato entre a pele e a louça da privada, claramente, decorria da preocupação de, no sentar-se, contrair algum tipo de doença. Nos anos 90, quando o ensinamento de urinar de cócoras, não muita abaixada a ponto de encostar na louça, nem tão elevada, a fim de permitir que o líquido escorresse pelas pernas, a Covid19 era mera cena de ficção cinematográfica; o uso do álcool 70%, esse aniquilador de vírus, bactérias e peles era incipiente. Todavia, minha sábia mãe, talvez guardando apenas o temor pela contaminação e não se atentando para cálculos matemáticos, deixou passar despercebido que sua filha, já naquela época, media um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura, o que me impedia de cumprir sua ordem com excelência, uma vez que, para além dos meus esforços, estava a limitação física; com o vaso sanitário a quarenta e cinco centímetros de altura, das duas uma: ou a parte de trás das coxas esbarrava no que mamãe pensava – com razão – ser um potencial transmissor de doenças ou o xixi molhava um pouquinho da parte interna das coxas. Soluções tais como fazer um “forrinho” de papel sobre o vaso eram ainda piores do que o forçoso treino de quadríceps em banheiros públicos. Um grande dilema para mim naquele tempo!

Anos mais tarde – quando comecei a pagar por minhas calcinhas – compreendi que mamãe tinha razão, não necessariamente, sobre a preocupação em alguém ver que vestia uma calcinha furada, mas sobre cuidar de mim; era auto cuidado o que ela estava me ensinando. Não apenas sobre ter uma boa apresentação social, mas também sobre investir em mim. Quanto à problemática do fazer xixi, novamente entendi que ela me ensinava sobre cuidar. Dia desses estive em São Paulo num compromisso de trabalho e, inevitavelmente, passei por banheiros públicos – passo por eles todos os dias – entretanto, à minha maneira, aplico o que mamãe ensinou: munida de álcool 70%, lencinhos umedecidos ou toalhas de papel, com orgulho, posso dizer que não houve vaso sanitário não esterilizado antes do uso, tão pouco deixei de fazê-lo após mim.

Na cabeça daquela garotinha de cinco, seis anos, não parecia fazer sentido os conselhos de sua mãe, foi somente com o tempo, experiências e percepções que compreendi a riqueza do que ela me trouxe; que cuidar de mim e do outro, do lugar comum, proporcionar que alguém cuja mãe não tenha recomendado a posição isométrica para fazer xixi – ou que sequer teve mãe para fazê-lo – possa se sentar, livremente, num vaso sanitário e receber de mim – mesmo sem saber – todo carinho e zelo que recebi de minha mãe, vai muito além de escolher a melhor calcinha ou não esbarrar na privada suja.

Clarice, a Lispector, disse: “até onde posso, vou deixando o melhor de mim. Se alguém não viu, foi porque não me sentiu com o coração.” Valquiria, a Volpato, gostaria de acrescentar: “ou porque não usou o banheiro depois de mim”.


20 de dezembro de 2023
Valquiria Rigon Volpato.

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Aqueles sábados...

..."ela teimou e enfrentou o mundo se rodopiando ao som dos bandolins".


Sábado, 25 de janeiro de 2020. Em casa as notícias chegavam por toda parte; no WhatsApp os grupos encaminhavam vídeos, fotos e áudios que, ao serem baixados, davam conta da tragédia. À medida com que as águas do Itapemirim inundavam a cidade, as galerias de celulares transbordavam aqueles arquivos de uma das notícias mais tristes já recebidas pelos cachoeirenses: o Rio Itapemirim, manso, de pequenas quedas entre pedras, havia se transformado com ferocidade inimaginável! Os doze metros acima de seu nível varreram o centro da cidade como nunca – sem qualquer exagero – se tinha visto.

Domingo, 26 de janeiro de 2020. Por volta das quatorze horas, após uma longa noite de angústia, o Itapemirim parecia se reencontrar em suas margens. No grupo de trabalho nos organizamos para a missão, que apenas mais tarde, entenderíamos seu verdadeiro significado; calcei botas emborrachadas, calça, uma blusa mais surrada, amarrei os cabelos em coque e, na companhia de minha irmã e cunhado, rumamos até o Palácio Bernardino Monteiro. Nosso carro estava limitado a algumas ruas da parte mais alta, descemos a pé e, de imediato, nos deparamos com a Praça Jerônimo Monteiro encoberta com tonelada de lama, restos de galhos e mobílias. Caos. Quando a chave girou para abrir a porta do Bernardino Monteiro ainda não poderíamos concluir em qual momento da história estávamos; no chão a lama fina, ainda misturada em água, formava um espelho, o mesmo que refletiria, friamente, a destruição.

Sábado, 03 de junho de 2023. Mês de férias, estava viajando para conhecer um pedacinho do Ceará, mas com o coração em Cachoeiro de Itapemirim, isso porque era noite de inauguração do Espaço Cultural Casa Carmô, iniciativa incrível da atriz, mulher incansável e amiga, Amanda Malta. Junto do Anderson, seu parceiro de vida, fizeram com que a casa fechada na Rua Prefeito Seabra Muniz, no Bairro Independência, ganhasse as formas mais genuínas da cultura cachoeirense! Eles pensaram cada detalhe, do lustre às fotos expostas pelas paredes, a Casa Carmô compôs a receita perfeita ao misturar café e cultura; um chopp também para aqueles que, como eu, numa mão seguram o livro de poemas e na outra a alça da caneca, enquanto, sem medo, falam sobre política.

Sábado, 16 de setembro de 2023. Marco Antônio Reis e Brenda Perim me convidaram para prestigiar a inauguração do Centro Cultural Luz Del Fuego, seu mais recente projeto, aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura Capixaba. Um pouco cansada após ter passado o dia entre tarefas domésticas, transformei a gata borralheira em Cinderela, e fui ao encontro dos amigos e seu novo espaço cultural, na Rua Newton Prado, no Bairro Ibitiquara. Duas atrações, ambas exibidas no teatro localizado na parte superior do imóvel, me fizeram chorar; Luiz Carlos Cardoso, com seu ensaio aberto de “A Metamorfose” de Franz Kafka, mexeu em algum lugar adormecido em mim. Senti a lágrima escorrer com gosto de saudade. Na cena seguinte, Iuriê me surpreendeu, uma Luz Del Fuego atual, performática, se rodopiava – em meus pensamentos, ao som dos bandolins, tal qual a dançarina de Oswaldo Montenegro – trazendo à tona a força de um choro irresignado, de mulher que jamais se cala ante as adversidades e violências estruturais.

Sábados, 25 de janeiro de 2020 e 16 de setembro de 2023. Na noite que o Itapemirim transbordou e devastou o centro da cidade, revirando espaços culturais, uns em especial, como o Teatro Municipal Rubem Braga – que segue fechado, agora blindado por uma espécie de tapume em aço ou algo assim, na tentativa de “espantar” a população em situação de rua e, por conseguinte, aprisionar a arte naquela caixa aporofóbica – não entendi como doze metros de água e lama teriam, tão ferozmente, submergido a cultura e o palco do teatro. Ao me deparar com “A Metamorfose” e aquela Luz Del Fuego vibrante, não me restaram dúvidas: em momento algum a natureza se voltara contra a cultura ou quisera destruí-la; as águas violentas do Rio avançaram sobre o Municipal Rubem Braga e o calaram para que outras vozes pudessem ser ouvidas. Existiu, por fim, um ato de coragem da própria natureza que, ao mover, forçosamente, aquilo que estava acomodado, incomodou Amanda, Anderson, Marco e Brenda; calou-se o teatro, gritaram os artistas!


29 de setembro de 2023.
Valquiria Rigon Volpato 

terça-feira, 28 de março de 2023

21 de Março: Dia Internacional contra a Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé


“...quando a batida no couro do tambor respondeu à primeira estrofe da cantoria, veio vindo, de dentro, a vibração; sangue pulsando e a certeza de que havia ali identidade. Era o mesmo DNA. Batendo palmas, a roda se mantinha, calor provocado pela emoção aquecendo a noite fria daquele 13 de Maio”.

Brasil, país de tantos tons, nasceu miscigenado, injetou nas veias de seus filhos a diversidade e acertou na composição. Vovó Aparecida contava que quando foi encontrada estava debaixo de uma sombrinha, num pasto de fazenda, rodeada pelo gado, disse que o capataz pegou a cesta e levou-a para a sede da fazenda, pra ser criada. Vovó era preta. Já o vovô Antônio, de olho claro, veio marcado pela longa travessia do Atlântico – navio que deixaria a Itália para ancorar no Brasil. Vovô era branco. Num país de misturas, somos resultados de um todo que se explica, mas nem sempre se entende; caminhos atravessados pelo amor, mas também pela dor. Em 1888, naquele 13 de Maio, a notícia era de que a escravidão deixaria de existir, no entanto, 135 anos mais tarde, a quantas correntes estamos presos? Os grilhões da antiga – e moderna – escravidão ainda impedem homens e mulheres de serem, definitivamente, livres… e, pelas amarras de outrora, há danos a serem reparados.

“...havia espécie diferente de alegria naquele momento. Cheguei, reverenciei o templo, a simbologia que carrega, e aguardei, paciente, o início da reza. O som do tambor rompeu o silêncio concretado das paredes daquela igreja e se fizeram preces em festa, com cores, danças, flores; orações assuntas aos céus”.

As compensações legais arquitetadas para tentar minimizar os impactos da violência racial não são suficientes para recompor, refazer a história, entretanto possuem a nobre missão de demonstrar que há o reconhecimento a quem verteu sangue, injustamente, para suprir os caprichos de uma sociedade cuja “época lhes permitia” tal comportamento. Embora haja, neste texto, o desejo de manter no passado o preconceito, como se, exatamente, ao tempo estivesse entrelaçado, pesaroso admitir que não, notar no agora a invasão da ignorância – a mesma foice mutiladora, capaz de aleijar homens e sonhos.

“...por volta de meio dia, Sol quente, na rua estreita de paralelepípedos, avistei-os, uns vinte ou trinta, cantando com voz forte, vestidos de branco e com espécie de estacas nas mãos, vinham subindo a ladeira. Pararam em filas, uns em frente aos outros, ergueram os pedaços de madeira e iniciaram o que me pareceu ser uma dança. Só mais tarde viria entender que era um encontro de “jornaleiros”, batendo suas flechas, rendendo homenagens a São Sebastião”.

Existe uma lacuna na compreensão da diversidade, do que é plural, sobretudo quando observadas em pessoas circunscritas num mesmo espaço geográfico, caracterizada por costumes, hábitos sociais ou crenças que, naturalmente, variam de uma pessoa para outra. No meio do caminho da diversidade tem uma pedra – a intolerância – difícil de ser removida, porque sua base está calcada no individualismo, cuja plataforma é o desrespeito.

“Na entrada, ainda sem entender a grandeza daquele lugar, olhei para a esquerda e vi o que, mais tarde, me disseram ser um assentamento de Exu. Avancei pelas escadas; no último degrau me esperava, toda de branco, quem me daria um forte abraço acolhedor. Sorrimos. À direita, no centro do barracão, o ireasè enfeitado para Iansã anunciava que naquela noite haveria saída de santo; era festa ao som dos atabaques!”.

Covardia é não se permitir a reflexão, seguindo, sem freios, o discurso cego do ódio, sem a compreensão demandada pela pluralidade que cerca o ser humano. Tendo votado em si mesmo, o homem elegeu-se dono da verdade, cujo poder – emanado de si para si – é deter a capacidade de dizer sobre o que é certo ou errado e, assim, julgar e condenar aquilo que, sendo diferente, afeta suas mais profundas inseguranças. A fortaleza invisível que impede o pensar, também se ergue, em muros altos, distanciando o homem de sua própria identidade.

“...parecia ser apenas mais uma manhã como qualquer outra. Fomos ao Bairro Nova Brasília para falar sobre trabalho; entre uma conversa e outra, gritou aos meus olhos, pendurados pouco acima da cabeça uns colares com miçangas coloridas. Perguntei se eu poderia usar, se não faltaria com respeito por não ser da religião. Ela me respondeu que não. A conversa seguiu outros caminhos. Tempo depois, chega o marido, também dono da casa. Ele se apresenta, sorri e, sem qualquer explicação, me entrega um daqueles colares: toma, é um presente pra você! Era guia de Xangô. Imediatamente, meus olhos se encheram de lágrimas; uma emoção instantânea me tomou. Naquela manhã, apesar de não saber, recebi a cura que somente eu sabia que precisava: Obá Kaô Kabecilê, Xangô!"

("Ode à Cultura Popular" - especial em homenagem ao Dia Internacional contra a Discriminação Racial e Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé).


Valquiria Rigon Volpato
21 de março de 2023.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

IncoMude-se

"Encaixados vão construindo a vida, que é estrada, mas não ponto final"...


Tantas coisas para escrever e um emaranhado de pensamentos tentando encontrar porta de saída – assim me sinto quando tenho a necessidade de olhar o papel em branco e conversar com ele coisas que, até sei dizer, mas não com a precisão com a qual posso escrever. Janeiro de 2023, o tempo não parou para minhas reflexões sobre o ano que passou – e 2022 merece uma pausa, uma xícara de café, um biscoitinho polvilhado com açúcar; merece ser sentido.

É clichê falar sobre aprendizados após o ano que se encerra, todo mundo faz isso – e daí se sou todo mundo de vez em quando?! – fato é que 2022 me deu certezas, entre elas que caminho não é destino. Mulher, 38 anos, advogada, servidora pública, escritora por paixão e muita convicção, solteira, sem filhos por opção, esses são os pavers do caminho que percorri até aqui. Encaixados vão construindo a vida, que é estrada, mas não ponto final. Lembro da metáfora do sapo, que se colocado na panela com a água ainda fria e aos poucos esquentando, certamente, morrerá cozido, porque a forma paulatina como o calor envolve o anfíbio não proporcionará o incômodo necessário para que ele pule e salve a própria vida. O sapo morre cozido na acomodação da água que esquenta aos poucos – o homem também.

Na história do sapo fico imaginando alguns cenários possíveis: ele se acostuma a ferver e morre sem reagir, sem sequer se debater, porque não percebe. Alguém o cutuca, balança a panela, ele pula para fora – estaria vivo! Mas, em “casa”? A verdade – minha e não, necessariamente, do sapo – é que o calor da água quente dá a impressão de segurança, conforta algumas emoções; do lado de lá da panela é desconhecido, frio (?), as possibilidades são infinitas e dá medo de viver, de experimentar o novo. Lembra quando eu disse que está tudo bem ser todo mundo de vez em quando?

Em 2022 cutucaram a panela e o “eufíbio” pulou para onde não conhecia. Não houve chão seguro, pelo contrário, a sensação de não estar em casa trouxe desconforto e noites mal dormidas; momentos em que voltar para a água quente parecia meta, única solução. Por fim, desistir. O aprendizado, afinal, repousaria no desistir? Fatalmente, que não! Há que se aprender, ainda, que a vida é estrada e não destino, por isso desistir não é sequer opção. Enquanto o foco era a panela, o mundo estava limitado ao diâmetro de grãos de arroz cozidos para o almoço; embora o sapo – e eu – não soubesse, depois de sair da letargia dessa enganosa sensação de conforto e segurança, outros lugares também podem ser seguros, não mais pela ebulição da água que acolhe – ilusão – e depois mata, mas pela pavimentação das vias condutoras do destino.

Acredito mesmo que não é necessário ter certeza o tempo inteiro – ganhar e perder, fazem parte – contudo, entender onde se está posicionado no universo é a medida certa entre a dimensão de mundo ou de panela. E se a água esquentar, pule.


Valquiria Rigon Volpato,

20 de janeiro de 2023.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Confesso

"...as camuflagens sociais e a ideia de domínio disfarçada de avanços científicos, contaminou o mundo com um poderoso vírus que, pouco a pouco, transformava pessoas em zumbis."


Confesso: não sou de assistir séries na Netflix. Os filmes me interessam mais pela brevidade nas conclusões. Ligo a TV, escolho o filme – nem sempre as escolhas me agradam ao final – assisto aquela narrativa e fim. Entretanto, em mais uma confissão, devo admitir que, recentemente, num Domingo de “atoísmo”, cuidando da mesma função de deitar, segurar o controle remoto e escolher, chamou minha atenção aquilo que já havia assistido diversas vezes em filmes: a Umbrella Corporation!

Resident Evil – lançado em 2002 – chamou minha atenção e não resisti. Cliquei e passei horas acompanhando o drama de Jade e sua irmã, Billie Wesker, na incansável luta para fugir do T-vírus, que se espalhava, novamente, sem controle, como no terrível incidente de Raccoon City, no México. O bioterrorismo da Umbrella nunca deixou de existir; as camuflagens sociais e a ideia de domínio disfarçada de avanços científicos, contaminou o mundo com um poderoso vírus que, pouco a pouco, transformava pessoas em zumbis. Descontrole emocional, raiva, episódios agressivos e morte – características marcantes de quem, seja como for, era contaminado pelo T-vírus.

Apenas fugir, tentar escapar, foi o que restou, inicialmente, à Jade, que viu aquele que dizia ser seu pai – na verdade criador – manter-se existindo, assim como seus clones, através do sangue de suas próprias filhas-criaturas. O drama familiar de Jade e Billie, que naquela altura convivia com instabilidades emocionais e o medo de se tornar um zumbi assassino, ainda que importante para uma análise de caso – até porque qualquer semelhança pode não ser mera coincidência – era secundário. De um lado, a Umbrella Corporation, liderada na ocasião pela implacável Evelyn Marcus, não permitia que nada atravessasse seu caminho rumo ao poder e dominação; sem aceitar opiniões contrárias, Evelyn atira e mata o próprio filho a sangue frio – uma cena que me fez congelar diante da TV. O surto caótico de Evelyn, que até minutos atrás aparentava ser “boa mãe”, impactou. Um tiro certeiro no olho do jovem Simon é a prova cabal de que a Umbrella não poderia abrir espaço para diálogo, tão pouco permitir a descoberta das consequências de seus experimentos irregulares e, assim, demonstrar ao mundo sua verdadeira intenção: lucrar, desenfreadamente, às custas dos mais fragilizados.

A promessa de inovações farmacêuticas pregada pela Umbrella Corporation – com fórmulas capazes de aliviar os estresses e ansiedades, na verdade, aplicava travas sensoriais, tornando os usuários insensíveis. Completamente, insensíveis. Mutações genéticas e armas biológicas, controle de massa: o objetivo aristocrata da corporação estava posto.

Baseada em privilégios de uma classe social, criada por detentores do capital, indiferentes a quaisquer mazelas humanas, Umbrella começa a ruir por seus próprios erros. As falhas, em especial de Raccoon City, evidenciavam que o modo de operação vigente não se sustentaria e que, apesar de todas as investidas para continuar seus testes ilegais, o apocalipse zumbi era irreversível. Noutra cena, Jade segue fugindo, lutando contra o sistema e perseguições de Umbrella, bem como lutando contra centenas de milhares de zumbis – despidos de qualquer reflexão, raciocínio ou característica humana, apenas repetindo atos agressivos em efeito manada.

Assisti aos oito episódios da primeira temporada de Resident Evil em sequência, aflita, dialogando com as personagens e, por fim, diferente dos filmes – cujas conclusões são imediatistas – à espera de novos capítulos, em especial, para Jade, que sem desistir, busca encontrar reagente antiviral para o T-vírus e, assim, curar e salvar a humanidade.

Resident Evil, Umbrella Corporation são obras de ficção. Apesar de se parecem muito com alguma realidade – brasileira – por aí.



Valquiria Rigon Volpato

02 de novembro de 2022.



sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Os Silêncios


 “...o relógio parou e houve um último estampido, o som produzido pelo cessar do caos”.






Noite dessas sonhei que escrevia; não sei bem se era texto ou lamento, mas lembro que havia sentimento. Acordei com os olhos úmidos. Ao longo do dia fui sentindo saudades – um incômodo, melhor assim –, uma lembrança que sei bem de onde vem. Quando a vida fora faz muito ruído, o silêncio das palavras me acalma, faz com que dentro haja paz; percebo, imediatamente, o mar tempestuoso voltar a ser lagoa azul. Meu navio de emoções ancora e me sinto segura. Foi sempre assim, mas parece que havia esquecido...

Ontem caminhava pela Rua Vinte e Cinco de Março tentando não pensar – bem difícil, confesso, porque a cada passo enxergo um mundo inteiro à minha frente. São composições: vejo a arquitetura, a história, crio minhas próprias histórias e vou me emocionando com tudo. A Casa dos Braga sempre me chama atenção, não apenas pelos contornos de uma construção que imobilizou parte do tempo, mas pelas vozes que ouço quando passo pela calçada; em verso e prosa, nitidamente, conversam comigo. A noite de ontem me pareceu, providencialmente, especial ao se chocar com a necessidade dos meus silêncios, que na verdade são silêncios para o mundo ao redor – é quando deixo de escutar os outros e passo a fazer meu próprio barulho.

No Jardim da Poesia vi palavras se ajuntando em sinuosas curvas; poéticas vinham ao encontro das tolices guardadas em meu coração. Pausa. Olho novamente. O externo está em câmera lenta e agora parece fazer mais sentido. Valsamos – palavras, sons e silêncios, nada além de nós e nossa particular admiração uns pelos outros – tão despreocupadamente nos entrelaçamos, mesmo instante em que o relógio parou e houve um último estampido, o som produzido pelo cessar do caos.

Nasci palavra. A vida tem me feito texto. Vejo meus pontos, vírgulas, novos parágrafos e essa costura assimétrica de um ensaio literário, uma obra de sons e particulares silêncios. Os mergulhos em mim são profundos, não consigo estar na superfície da vida e, quando ignoro, ela me alcança e me devolve – não sei respirar fora de mim –, me traz sonhos como o daquela noite em que escrevia, umedece meus olhos, força minhas placas tectônicas e provoca abalos sísmicos em sentimentos esquecidos; tudo vem à tona, é sim como as lavas vulcânicas, não há como conter, impedir, não há esbarro, limite, contenção, apenas deixar fluir, queimar, encontrar seu curso e, novamente, silenciar.

 

O vulcão adormecido nunca deixou de existir. Ele sempre estará lá. Até a próxima erupção.

 

 


Os Silêncios, de Valquiria Rigon Volpato

11 de agosto de 2022.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

O que ainda está inteiro em mim


Hoje recebi da vida uma espécie de toque – ainda não sei bem se foi toque, aperto de botão ou abrir de gavetas – que me fez voltar no tempo uns vinte e cinco anos, em 1997.

[Antes de continuar com a ideia principal desse texto, preciso parar e refletir um pouco sobre a ligeireza do tempo, como tudo aquilo, apesar de tão vívido em mim ficou tão distante. Caramba! Foram duas frases na tentativa de compor um parágrafo e parece que algo explodiu em mim... Eu só tinha doze anos, não poderia supor quantas coisas aconteceriam comigo nos próximos vinte e cinco anos e como os atos daquele momento, mesmo com meu total desconhecimento sobre previsão de futuro iriam influenciar quem sou hoje ou como todos aqueles pedacinhos eram parte de mim].

Naquela época frequentava com rotina a biblioteca da escola – o extinto Colégio Ateneu Cachoeirense – e me interessavam os romances, encontrava nos livros emoções que me faziam transbordar junto às personagens. Não saberia dizer quantas vezes chorei e sorri para o papel absorta naquele conteúdo de vidas que se confundiam e entrelaçavam à minha. Um de meus dilemas durante a leitura era saber dosar a velocidade: não podia ler rápido demais sob pena de terminar o livro e ficar órfã daquela história que mexia tanto com meus sentimentos; órfã do amor estabelecido no curto espaço de tempo que duravam esses meus relacionamentos adotivos.

Nas prateleiras de madeira da biblioteca do Ateneu encontrei certa vez com um tal Pedro Bandeira, responsável por fazer adaptação livre da obra Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, escrevendo o então seu “A Marca de uma Lágrima”. Acredito que mais do que a própria Isabel – protagonista da trama de Bandeira – minhas lágrimas marcaram as páginas do livro; fortissimamente conectada à história, havia em mim sensações e imagens, tudo acontecia na forma como meu corpo e pensamentos projetavam as cenas.

Vinte e cinco anos mais tarde, manhã de segunda-feira, numa conversa despretensiosa costurada por uma xícara de café, lembrei-me do quanto sou sensível e como os sentimentos importam para mim. Viajei no tempo para me reencontrar com a menina leitora e perceber nas páginas dos livros o refúgio, a liberdade de ser, sentir e criar minhas histórias, indo para lugares, conhecendo pessoas... vivendo através delas. Na mesma conversa, em maio de 2022, percebi que a falta despertou em mim o desejo; por não ter, agarrei a oportunidade quando a encontrei e a fiz especial. Minhas emoções importam – não as devo julgar e condenar – porque, definitivamente, a partir delas construí sentimentos.

Os livros me ensinaram a amar, chorar e sorrir, me sensibilizaram, falaram comigo sobre empatia – e isso não tem nada a ver com perfeição. Entre tantos pedaços de mim, especialmente hoje, os livros me parecem aquilo que, validado pelo tempo, ainda está inteiro em minhas memórias e coração.




Cachoeiro de Itapemirim, 23 de maio de 2022
Valquiria Rigon Volpato


domingo, 5 de dezembro de 2021

"Esse não é um texto sobre saudade, é sobre ser e estar presente..."

...ela costuma ficar por ali, no quintal de casa, estendendo roupas no varal, dando milho às galinhas, molhando as verduras na horta ou só sentada mesmo na escada – nos dois primeiros degraus, pertinho do terreiro – descansando ou chupando uma laranja. De casa é perto, vou até ela uma ou duas vezes durante o dia, normalmente, pra gente papear, falar da vida cotidiana na roça, dos sonhos – meus e dela, claro – planejar viagens, falar das paquerinhas; ela me ouve com atenção, não importa se está lavando a louça ou fazendo pão, ela não perde o foco. É rápido: café tá pronto, cheiroso, o “pão de casa” quentinho e a manteiga fica toda derretida. Se o papo estava bom antes, agora é que não tem fim! Quando o relógio aponta as três da tarde, ela liga o rádio na Diocesana pra ouvir a oração, depois abaixa o volume pra não atrapalhar a conversa e a gente continua. Quando chega visita – eu acho que a visita chega naquela hora, porque sabe que tem pão quente e café fresquinho – ela logo convida pra entrar, sentar e a gente muda de assunto, interage, quando vê é hora da janta… Despeço dela, volto pra casa; que tarde boa!

Domingo de manhã a gente acorda cedo pra ir à igreja. Vamos todos no fusca 1973 do papai. Legal é que quando abro os olhos, ela já está na cozinha esperando pra pegar carona, ela faz questão de ir à igreja, cantar aquilo que sabe de cor e ler o que aprendeu, quase sozinha, num orgulho danado de saber o que está escrito nos livros que usamos na missa. Na igreja o lugar dela é certo: cantinho do segundo banco à direita! É lugar cativo, tanto que ninguém se senta ali e quando um visitante comete essa “gafe”, logo alguém avisa: “não senta aí, não, porque esse lugar é da Dona Zelinda”.

Quando termina a oração, ela sai, fica ali na porta da igreja cumprimentando os amigos, vizinhos, contando histórias. Eu me aproximo, ela me abraça forte e convida para tomar café com ela, sempre me seduzindo com a frase: “o pão tá quentinho, fiz agora de manhã”. A gente entra no fusca, papai nos deixa na casa dela, e vamos nós pro café com pão de casa e manteiga derretida. Não demora muito e a família começa a se reunir, chegam tios, primos, amigos e a cozinha vai ficando pequena pra acolher tanta gente; a conversa se expande e só é interrompida pelos risos e brincadeiras; pouco a pouco, o cheiro do café vai sendo substituído pelo da “minestra” feita com macarrão de casa, coisa que ela faz questão de fazer. Gosto de ajudar ela a abrir a massa do macarrão – antes era no rolo de madeira, agora tem o “cilindro” fixado à mesa. Que modernidade! – passar fubá pra não grudar e, enquanto isso, sentir aquele cheiro bom de família reunida. O almoço não pode demorar, ela gosta de servir antes do meio dia; coloca as panelas e travessas sobre a mesa, logo a fila se forma e cada um acha um canto da casa pra apoiar o prato. Silêncio. Único momento em que todos ficam quietos é quando estão comendo!

Nem bem termina o almoço já tem água fervendo pra fazer mais café. Um lava a louça, outro vai secando com o pano de prato, guardando aquele monte de vasilhas, eu costumo varrer o chão da cozinha e passar pano, porque ela é exigente com limpeza, não gosta de gordura e água no chão. Tudo arrumadinho e limpo, a gente vai pra varanda – da frente ou da sala – ela deita, escora a cabeça com o antebraço e mão esquerda. Novamente, a família reunida pra continuar o bate papo após o almoço. Deito ao lado dela e fico olhando o céu; as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil, fantasiando a velocidade em que a Terra gira.

Faz dez anos da última vez que a vi. Dez anos do pão, do café, das conversas, da carona de fusca para ir à missa; acho que hoje sei, não em números, mas em sensações o quão rápido a Terra gira... Não consigo falar dela no passado, porque não é lá que ela está, ela está aqui junto de toda a história a ser lembrada, no amor imenso que sempre demonstrou por todos e nas sementes desses mesmo amor que deixou plantada em nós. Esse não é um texto sobre saudade, é sobre ser e estar presente; vó Zelinda, PRESENTE!

"...as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil, fantasiando a velocidade em que a Terra gira"

"...as nuvens passam por detrás do Itabira e fico naquele conflito bobo, imaginário, infantil,  fantasiando a velocidade em que a Terra gira"


Valquiria Rigon Volpato
4 de dezembro de 2021.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

O sertão que há em nós

"Em beiras de ruas de chão batido, enfileirados desenham escadas humanas, pequenas vidas severinas de severidades que se aproximam, vão no vão de seus anseios desejar o mínimo – arroz, feijão – a fome, se vai embora, deixa solidão; ela é constante companhia. Dói o estômago vazio, dói mais o pouco raciocínio de quem, tendo a chance, não resolve problemas, apenas fomenta a confusão." 


Aridez de sentimentos em terra rachada de corações-torrões, sangra os calcanhares dos pés cansados, desses andarilhos, tantas vezes, desanimados em busca de sua própria redenção. Ouvi dizer que têm sede de justiça, cuja fonte anda seca; de cuias nas mãos, imploram: dignidade! Gritam no deserto – não têm eco, não têm representatividade. Em beiras de ruas de chão batido, enfileirados desenham escadas humanas, pequenas vidas severinas de severidades que se aproximam, vão no vão de seus anseios desejar o mínimo – arroz, feijão – a fome, se vai embora, deixa solidão; ela é constante companhia. Dói o estômago vazio, dói mais o pouco raciocínio de quem, tendo a chance, não resolve problemas, apenas fomenta a confusão.

Sustento mesmo vem do xique-xique, que ensopado em choro, mantém o corpo de pé: levanta cedo, vai pra lida, ergue a cabeça, sobrevive e volta pra dormir. Em casa, a noite soturna encobre os pedintes olhares, melhor assim – deixar acreditar que, quando os olhos não podem ver, o coração finge se enganar. Chique mesmo são os champanhes e canapés, os brindes com rapés, essas plantas que não nascem no sertão – compradas a preços altos, pagas em cartão, dinheiro que desce pelo ralo, diferente da água que não irriga mais o chão.

Esperança é item raro, anda caro no mercado da ilusão, parece chuva anunciada quando o amontoado de cirros mancham o azul do céu; expectativa – essa sim! – se cria tal qual erva daninha que sufoca a plantação. Mil léguas em pés descalços, enfrentando os percalços na certeza de resistir – mais a frente ainda tem poço d’onde vem o pouco pra beber – lata d’água na cabeça e fé – fita o caminho, porque mesmo sozinho, não se pode desistir.

Tem sertão por aí que não é no nordeste, mas que vai de leste a oeste, norte, sul, sudeste, tem escassez no homem, seca atroz dentro de nós – o homem bicho, carcará que pega, mata e come, nem sempre pra matar a fome, numa batalha desleal de exaltação do próprio nome. No entanto, na aragem do coração sertanejo o solo é fértil, a semente do amor germina forte, porque, para quem não foge à luta, nunca será sorte, sempre será coragem!


(Cachoeiro de Itapemirim - ES, 29 de setembro de 2021

Valquiria Rigon Volpato)